segunda-feira, 27 de julho de 2015

Vício

Um dia ela me olhou bem nos olhos e cantou, desafinada:  "minha papoula da Índia, minha flor da Tailândia, és o que tenho de suave e me fazes tão mal". Eu tinha 13 anos e era a primeira vez que era comparada com drogas... e eu nem sabia disso. Mas eu entendia "suave" e "mal" e isso nos bastava. O porquê era que eu não conseguia entender ainda. Ela tinha a minha idade e seu olhar parecia chumbo, carregado de dor e rancor e medo. Acabou se aproximando ao perceber que eu conseguia viver em um mundo próprio e mágico que se tornava real enquanto eu falava. 
Fantasia era tudo que eu oferecia porque era tudo que eu tinha. Fantasia era tudo de que ela precisava. Na minha imaginação havia campos de margaridas onde aconteciam amores perfeitos, risos, acolhimento e segurança. Mas a imaginação era minha, a magia só acontecia comigo. Depois, o desamparo. Em casa, as críticas, o olhar raivoso da mãe, a fuga constante da presença do padrasto, a realidade. Quanto a mim... eu travava minhas próprias batalhas, mas com a vantagem de ser capaz de deixar o corpo lutando enquanto minha mente voava.
Como enfrentar a realidade, quando não se tem idade nem autonomia para mudá-la? Como viver no desamor e no medo? Amor, para ela, só existia com desconfiança e raiva, uma vez que tudo terminava no desamparo. Era assim que me amava. Era por amor a mim que ela acreditava e eu nem mesmo sabia reconhecer que era amor, mas continuava oferecendo sonho: o final era um desamparo diário.
Até que um dia, seus olhos estavam inchados quando ela abriu o portão. Por trás, o olhar sempre raivoso da mãe. Então percebi que acreditar na minha fantasia já era um problema a mais: o suave que faz mal. Mas eu não tinha mais nada a oferecer.

Ainda demorou muito tempo para meu seguro mundo imaginário desmoronar. Cada pedaço era destruído na medida em que o fantástico saía da imaginação para se tornar real. A rua, as pessoas reais, a terra, o calor e a luz do sol, o cheiro da chuva, todas as coisas belas que meus sentidos apreendem, o aqui e o agora... Quando viver passou a ser possível, a fantasia não precisou mais ficar presa na imaginação e nas palavras, então deixou de ser fuga para ser oportunidade. Já não posso oferecê-la porque já não é minha, mas sei onde encontrá-la. Será que ajuda?

quinta-feira, 23 de julho de 2015

Vôo livre

Levanto vôo, passo por cima do que muitos consideram como fracasso. Se fracassei, foi em não ser tão livre como eu sempre quis ser. Se fracassei, foi em não ser racional como eu acreditava ser. Só que, olha, ter fracassado não é motivo para desistir. Às vezes parece que esperavam que eu me resignasse ou me matasse. Não. Minha resposta é "não" quantas vezes forem necessárias. Não! Continuo voando para longe, bem aqui em cima. Às vezes sinto minhas asas pesarem, pouso no galho de uma árvore e observo enquanto recupero meu fôlego. Ser livre exige muito esforço.

sábado, 18 de julho de 2015

Palavras

Prima a sabedoria extremo oriental pelo silêncio. Já a tradição semita se constrói na palavra: no início havia o verbo. E eu, que tenho o coração mais próximo dos antigos nômades do deserto, só sei trabalhar o mundo dessa forma: com palavras.
Elas escorrem pelos meus dedos e, unidas em sentenças, colocam ordem em fios emaranhados de pensamentos e sentimentos e lembranças. Ou: posso ouvi-las em minha própria voz enquanto elas se desfazem no ar. Uma após a outra... e muito do que eu não era capaz de entender torna-se compreensível.
No entanto, o silêncio tem o seu valor, naturalmente! Porque há palavras ditas somente para ferir e essas deveríamos silenciar. Mas, estranhamente, temos mais o costume de calar as palavras belas quando são verdadeiras. Por quê? As palavras belas e verdadeiras são a negação das armaduras: elas expõem o nosso melhor ao ataque ou ao desprezo e, muitas vezes, nosso melhor é bastante frágil. Mas não me importo muito com isso: o que um eventual ataque conseguir destruir, eu reconstruo... com novas e mais belas palavras.

quinta-feira, 16 de julho de 2015

Desiludindo III

Escrevo como se você fosse a mocinha e eu, o cavalheiro da rosa. Falo da doçura dos seus olhos, da delicadeza de suas palavras e de toda a minha corte fracassada. Mas minhas confissões estão cheias de mágoa de mulher empoderada ao saber que julgam-na viril e indigna de amor. Julgam e julgam errado esses juízes... você, o pior deles. Não entendem quão mulher eu sou! Mulher e toda mulher. E acho até que, na verdade, entendem sim e é isso o que assusta: minha feminilidade não se subjuga, querido.

Desiludindo II

Era delicado e até puro o meu amor. Nasceu de uma frase doce e espontânea - será? Ou apenas quero entender que sim? -, agora agoniza no seu silêncio, no seu... desprezo?  - e eu queria tanto acreditar que não...
Mas era puro como tudo o que sinto. Sim! Também o meu desejo tão natural, tão instintivo, tão animalesco, também ele era puro. Porque não há perversidade nas coisas naturais, é o nosso racionalismo que corrompe tudo! E agora estão morrendo. Deixo morrer. Por mais que eu escreva a respeito, deixo morrer: era tudo bonito e delicado demais para a gente corromper.

Desiludindo I

Desisto, depois espero, jogo as runas, sonho por um minuto, acabo por desistir de novo e de vez. Que esperança eu poderia ter? E para quê? Apenas querer não é o suficiente para ser querida. E, mesmo se eu pudesse, de que adiantaria um amor obrigado? Não. Não quero um amor obrigado, nem falsas esperanças, nem projeções de comédias românticas. Afinal, bem sei que vou virar as costas e você não vai me chamar de volta.